Pontos Principais

  • A produção brasileira de soja pode ter sido sistematicamente subestimada nos últimos anos.
  • Isso foi causado pela falta de levantamentos de estoque físico.
  • As estimativas conflitantes dificultam a formação de preços.

O Brasil se prepara para o início do plantio de sua safra de soja 2022/23 ainda com algumas disparidades nas estimativas de produção da safra 2021/22, colhida no primeiro semestre de 2022. Enquanto as fontes oficiais brasileiras falam em 124 milhões de toneladas (Conab) e 118,8 milhões de toneladas (IBGE), o USDA (Departamento de Agricultura dos EUA) e a Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais) indicam 126 milhões e 126,6 milhões de toneladas, respectivamente. Considerando estimativas de consultorias privadas, os números variam de 123 milhões a 127 milhões de toneladas.

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Explorar a diferença entre esses números pode parecer preciosismo, mas o fato é que, num ano de quebra de safra, como é o caso agora em 2022, alguns poucos milhões de toneladas fazem a diferença na hora de fechar o quadro de oferta e demanda e de calcular os estoques finais que existirão no país em 31 de dezembro – volume importante para a precificação da soja nos últimos meses do ano e também para o consumo interno e a exportação no início de janeiro, quando a colheita da nova safra ainda está muito no início.

As diferenças entre as estimativas de produção e a tendência de ajustes retroativos para cima observada nos últimos anos fazem alguns analistas especularem que a área plantada com soja no Brasil seria, na verdade, ainda maior do que dizem as fontes oficiais. Isso aconteceria, segundo eles, porque parte dos produtores do Brasil semearia o grão em áreas desmatadas ilegalmente, que não estariam mapeadas pelos levantamentos oficiais. Eu, particularmente, não acredito que esse seja o caso. Mas, antes de explicar os motivos que me levam a pensar assim, preciso contar a história de como o tamanho da produção brasileira de soja passou a ser tema de dúvidas e até de teorias conspiratórias.

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Uma Exportação Alta Demais

Novembro de 2018. O Brasil estava com cerca de 70% da área estimada para a safra 2018/19 de soja já plantada. Normalmente, todas as atenções já estariam voltadas para a nova temporada. Naquele ano, porém, a safra anterior ainda gerava dúvidas. A produção de soja do Brasil na safra 2017/18, colhida no primeiro semestre do ano, era estimada pela Conab em 119,3 milhões de toneladas, novo recorde para o país.

As exportações, por sua vez, eram projetadas pelo órgão em 76 milhões de toneladas, também uma marca histórica que, aliada ao consumo doméstico firme, deixava os estoques finais em menos de 700 mil toneladas, um dos mais baixos já registrados.

Pelos dados oficiais da alfândega brasileira, os embarques acumulados de janeiro a outubro somavam 74,4 milhões de toneladas. Como o Brasil normalmente exporta pouca soja nos últimos meses do ano, período em que os EUA são a origem mais competitiva, fechar 2018 com exportação de 76 milhões de toneladas parecia ser algo perfeitamente factível. Mesmo que de forma apertada, as contas fechavam no quadro de oferta e demanda.

 

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Guerra Comercial

O problema é que o ritmo dos negócios para embarque no fim de 2018 estava acelerado demais para que as exportações fechassem o ano em apenas 76 milhões de toneladas. China e EUA estavam em guerra comercial. Os chineses, dispostos a demonstrar força, reduziram drasticamente suas compras de soja americana, recorrendo a toda e qualquer origem capaz de substituir os EUA. O Brasil, claro, era a origem mais óbvia. Mas havia a limitação da oferta. Mesmo com produção recorde, parecia não ser possível exportar mais do que 76 milhões de toneladas.

Na dúvida, os chineses ofereceram prêmios mais altos para originar o restinho de soja que ainda existia no Brasil, elevando as indicações nos portos brasileiros para até US$ 2,60 por bushel sobre a Bolsa de Chicago – novo recorde para a época. No fim das contas, o “restinho” de soja não era tão pequeno assim. Em novembro e dezembro de 2018, o Brasil exportou 4,8 milhões e 4,1 milhões de toneladas, volumes muito acima do normal para esses meses. Com isso, o ano terminou com exportação total de 83,3 milhões de toneladas.

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Ajeitada nos Números

Já no começo de dezembro de 2018, a Conab havia elevado sua estimativa de exportação de 74 milhões para 82 milhões de toneladas. Mas não houve aumento na produção, mantida em 119,3 milhões de toneladas. Até mesmo o USDA, naquele momento, ainda trabalhava com produção de 120,3 milhões de toneladas, número insuficiente para comportar uma exportação tão alta.

Para não implodir o quadro de oferta e demanda, naquele mês de dezembro a Conab reduziu o histórico do consumo doméstico desde a safra 2012/13, inflando os estoques finais de todas as safras seguintes, até chegar a um estoque inicial grande o bastante para comportar a exportação maior e ainda ficar com estoques finais de 1,6 milhão de toneladas.

Mas, com a confirmação da exportação de 83,3 milhões de toneladas, que em janeiro de 2019 transformou a estimativa de estoques finais novamente em pó, a Conab parou de divulgar quadros de oferta e demanda para a soja. A divulgação só foi retomada em novembro de 2021, mas ela continua incompleta até hoje, sem histórico anterior à safra 2020/21.

Produção Maior

Durante o período em que não divulgou o quadro de oferta e demanda de soja, a Conab fez ajustes mais profundos em seus números, passando pela revisão do tamanho de cinco safras passadas. Mesmo assim, as dúvidas continuam e há questionamentos sobre as estimativas do órgão para o esmagamento, por exemplo. Em seu relatório do início de agosto, a Conab sofreu críticas porque, ao assumir números do IBGE como estoques iniciais da temporada 2021/22, ela reduziu o esmagamento da temporada 2020/21 – um número que, em tese, vem da indústria e já deveria estar consolidado, sem possibilidade de revisão a essa altura.

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Não se trata, aqui, de criticar os métodos da Conab, até porque eu não os conheço a fundo e porque reconheço que o órgão desempenha mais papéis e realiza mais tarefas do que seria de se esperar com os recursos de que dispõe. E não foi apenas a Conab que errou em 2018. Outros órgãos públicos e consultorias privadas também vinham errando, por deixarem as safras passadas para trás tão logo começasse o plantio da safra nova. Foi necessário que acontecesse uma temporada de consumo muito forte para que o problema da produção subestimada viesse à tona.

Estoques Trimestrais

Não há problema nenhum em fazer ajustes retroativos nas estimativas de produção. O USDA faz isso com a safra dos EUA quando o relatório trimestral de estoques físicos de 30 de setembro sugere que a produção foi maior ou menor do que se estimava. E isso acontece quase todo ano. Com números consolidados de consumo interno, exportação e estoques, fica fácil achar o erro: ele está na estimativa de produção, que então é ajustada. E esses ajustes do USDA são feitos logo no fim de cada safra, e não meses ou anos depois, quando o tamanho de determinada safra já não influencia mais os preços da soja.

No Brasil, o IBGE faz levantamentos semestrais de estoques físicos. Eles ajudam, mas são publicados muitos meses depois da data de referência e muitas vezes não batem com os números de produção estimados pelo órgão e os dados de consumo da Abiove ou da Conab, por exemplo. O USDA também estima estoques finais para o Brasil, mas eles são referentes a 30 de setembro, fim da temporada comercial mundial usada pelo órgão, e são de pouca utilidade porque o ano comercial do Brasil termina em 31 de dezembro.

Satélite e Vigilância

O mais provável é que a produção e o quadro de oferta e demanda de soja do Brasil continuem causando surpresas ainda por bastante tempo. E não porque a área cultivada esteja subestimada, como creem alguns. É muito difícil adulterar o tamanho da área numa época em que os levantamentos são feitos por satélite e há vigilância sem trégua por parte de ambientalistas e importadores. As surpresas continuarão acontecendo simplesmente porque é necessário que os levantamentos de estoques sejam feitos com maior periodicidade e agilidade, para que haja uma calibragem do tamanho da produção via consumo e estoques, como acontece nos EUA.

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